Em uma afirmativa sobre o lugar da psiquiatria dentro da Medicina, um estudioso britânico certa vez disse algo como: "A psiquiatria não é parte da Medicina, mas sim sua outra metade”. Na época em que li o artigo, eu ainda estava fazendo a residência médica, época da imersão teórico-prática que o médico já formado faz para se especializar. No meu caso, residência em psiquiatria. Aquela citação me fez pensar pois eu não pretendia abandonar anos de minha formação para entrar num ramo que me distanciasse de tudo que aprendera até então. Na faculdade, psiquiatria é matéria obrigatória e geralmente é através deste contato que surge o interesse do estudante pelo assunto, como foi meu caso, mas supor que a psiquiatria era uma área de alguma forma apartada de todo o resto da Medicina me soava desconfortável. Claro que aquela era a mentalidade de um médico recém-formado no século XXI, que apenas começava a perceber os motivos históricos para que a psiquiatria fosse vista durante décadas anteriores como se fosse uma ilha de ciências humanas dentro dos domínios das ciências biológicas. Nem sempre foi assim, mas o apartamento da psiquiatria do resto da Medicina foi favorecido e justificado por conta do agudo progresso das neurociências do início do século XX que não davam conta de justificar os fenômenos estudados pela psiquiatria.
Pouco antes da primeira metade do século XX, grandes nomes na Medicina costumavam transitar livremente entre os campos da neurologia, neuropatologia, neuroanatomia e psiquiatria. Como exemplos podemos citar Franz Alexander Nissl, Jean-Martin Charcot, James Parkinson, Alois Alzheimer, Sigmund Freud entre muitos outros. Contudo, daquela época para diante, houve a partição bem mais marcada entre o que era considerado neurológico e o que era considerada questão psiquiátrica. Por motivos abordados adiante, a divisão entre estas áreas médicas foram sendo cada vez destacadas, o que trouxe vantagens e desvantagens.
Restringir estudos a uma área específica do conhecimento permite maior aprofundamento no tema em questão, embora acabe restringindo sua amplitude. Porém, a não-especialização do estudo embora pareça uma ideia atraente, produz um aprofundamento superficial nos assuntos estudados. Dessa forma, o antigo território comum da "neuropsiquiatria" foi sendo cindido, fazendo nascer a linha divisória entre ambas as especialidades mas que nunca foi uma linha realmente muito definida.
A separação inegável entre neurologia e da psiquiatria foi como o afastamento forçado de duas irmãs gêmeas: algo possível de ser feito, embora não desejável. A complementaridade evidente entre ambas, que não podia ser ignorada, foi pavimentada sobretudo pelos estudos neuroanatômicos da época, como os que o alemão Korbinian Brodmann publicou em 1909 relacionando áreas citoarquitetônicas do córtex cerebral com certas funções específicas. Daí derivou que lesões em estruturas específicas provocavam distúrbios específicos - ao menos era essa a visão das ciências médicas do início do século XX. E essa foi a base do divórcio final: as doenças que tinham base neuroanatômica clara ficaram para a neurologia; as que não tinham, para a psiquiatria.
Vale aqui recordar a fala de Hipócrates em torno de 400aC sobre o cérebro: "deveria ser sabido que ele é a fonte do nosso prazer, alegria, riso e diversão, assim como de nossos pesares, dores, ansiedades e lágrimas. Não há nenhum outro envolvido que não o cérebro. É especificamente o órgão que nos habilita a pensar, ver e ouvir, a distinguir o feio do belo, o mau do bom, o prazer do desprazer. É o cérebro também que é a sede da loucura e do delírio, dos medos e sustos que nos tomam; é onde jazem as causas da insônia e do sonambulismo, dos pensamentos que não ocorrerão, dos deveres esquecidos e das excentricidades”. Esta afirmativa nos faz supor que de longa data o ser humano relaciona o cérebro com as funções mentais. Crânios com perfurações feitas em vida (com sinais de cicatrização) foram encontrados em sítios que datam de até 10.000 anos atrás. Supõe-se que estas trepanações eram feitas para a saída de maus espíritos, que estariam fazendo mal ao sujeito. E por que perfurar ali, na cabeça? Porque é justo onde repousa o cérebro. Os homens primitivos observaram que fortes traumas cranianos induziam à perda da consciência, da memória, à ocorrência de convulsões, que levavam a alterações da percepção do ambiente, da interação interpessoal e do comportamento.
Dentro deste tema não é possível deixar de mencionar o emblemático caso de Phineas Gage, operário que trabalhava usando explosivos na construção de estradas de ferro nos Estados Unidos da América na época da expansão para o oeste. Ocorreu que ele se acidentou durante o trabalho e um barra de ferro de 1,5m transfixou seu crânio, adentrando pelo osso zigomático, perfurando o olho esquerdo, o lobo frontal cerebral esquerdo e atravessando a tábua craniana. Felizmente, Gage não morreu e nem teve infecções graves, embora tenha perdido a visão de um olho. O curioso foi sua evolução clínica: a extensa lesão frontal provocou marcantes alterações comportamentais nele, mudanças permanentes de traços de sua personalidade, tendo ficado muito mais impulsivo, irresponsável, mulherengo e grosseiro. Chegou a ser demitido de seu emprego por indisciplina, meses depois. Houve quem argumentasse que estas mudanças aconteceram por causa do trauma emocional por que ele passou, uma experiência de quase morte e que por isso ele teria optado deliberadamente por mudar certas convicções pessoais e sua conduta frente à vida. Plausível até. Mas o estudo posterior de outros casos de lesão em lobos frontais mostravam desfecho semelhante, come alterações sobre traços de personalidade, ainda que a causa da lesão não fosse necessariamente por traumatismo craniano perfurante como foi o caso de Gage. Outros causas de lesão frontal, como por lesões vasculares, neuroinfecções ou por doenças neurodegenerativas também provocam quadros semelhantes, revelando que o que importa é a parte afetada do cérebro. Antes do caso de Gage, a comunidade médica considerava os lobos frontais como “estruturas silentes” (ou sem função)!
Evidentemente, a origem da separação entre o que é neurológico e o que é psiquiátrico foi um fato datado, altamente dependente do alcance dos recursos da ciência médica da época. Não havia os refinamentos biomoleculares ou imagenológicos como há atualmente. Hoje, é possível mapear áreas do cérebro em pleno funcionamento e detectar neurotransmissores mais ou menos ativos em circuitos específicos. As especialidades seguem separadas por tradição histórica mas, sem dúvida, caso fossem hoje traçar uma nova fronteira entre ambas, esta seria uma tarefa que exigiria critérios totalmente diferentes dos antigos - se é que isso seria possível.
Por Ricardo Abel Evangelista.
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